sábado, 1 de agosto de 2009

Gentes da nossa aldeia "Retalhos da vida de um "farrapeiro"

Do sagrado ao profano, do velho ao muito velho, do roto ao esfarrapado e do reluzente ao enferrujado. O que quer que procure na Feira de Antiguidades de Gouveia, o ti Ezequiel Guilherme, "farrapeiro", tem ou já teve. Por entre relógios, ferros e panelas, este feirante de 66 anos garante que não gosta de «coisas velhas». Mas o negócio é sempre o negócio. A experiência ganha a pulso ao longo de 50 anos diz-lhe que «o antigo é que vende».

«Então a menina quer comprar alguma coisa»? Izequiel Pais Guilherme, 66 anos, "farrapeiro" de profissão, encolhe os ombros e coça a cabeça, a candidata a freguesa afinal só pretendia observar as velharias, pega numa, em duas, comenta a beleza dos objectos e segue para outra banca num ápice. Moedas de todas as nações, relógios, figuras dignas dos artesãos das Caldas, cestas, crucifixos, arados, candeeiros a petróleo, ferros de passar, panelas de ferro e cantarinhas. Tudo meticulosamente colocado em fila, exposto com simplicidade e sabedoria. «Há de tudo!», garante convicto o farrapeiro que já não vende farrapos: do sagrado ao profano, do velho ao muito velho, do roto ao esfarrapado, do reluzente ao enferrujado. Mas nem por isso hoje lhe corre bem o dia, desde as oito e meia da manhã que Izequiel montou o "estaminé", com os habituais 90 minutos de esforço e perícia, mas os clientes «aqueles que compram mesmo, esses têm sido poucos», lamenta o sexagenário apreensivo.
Em Gouveia, no último Domingo de cada mês, os feirantes juntam-se na praça de São Pedro para homenagear o antigamente. Num regresso ao passado simbólico os gouveenses, e não só, observam, curiosos o material exposto, em panos e bancadas de madeira. E até há quem venha propositadamente para a feira. É o caso de João Almeida, de Coimbra, um coleccionador de selos incansável que «sempre que pode» passa por Gouveia no último Domingo de cada mês, à procura de «preciosidades». Curiosamente, por volta das três horas daquela tarde de Domingo, a banca dos selos e a das moedas eram as mais concorridas da feira.
Mas a maior afluência de público àquelas bancas não preocupa Izequiel Guilherme, de Dominguizo, «a terra dos farrapeiros», no concelho da Covilhã. Ele que é um especialista em feiras, «já ando nisto há mais de 50 anos», garante . Para além do mais, nem todos os dias são como este, com pouca freguesia, «há feiras piores», assegura. Sentado no muro da praça, de mãos nos joelhos, Izequiel Guilherme conta que o que vende é fruto das suas viagens pelas aldeias de norte a sul do país. «Compro tudo nas aldeias às velhotas!». «Uma peça aqui, outra peça além e aumenta-se a exposição». E é que «as coisas novas», para Izequiel Guilherme pouco interesse têm. «As coisas velhas é que dão dinheiro», garante o farrapeiro que confessa que para ele, «isto das velharias» só mesmo para vender. «Para mim, não têm valor nenhum, não acho piada nenhuma a isto». O farrapeiro desvenda que muitas vezes, as freguesas que atende costumam-lhe gabar a vasta colecção de velharias, ao que ele prontamente responde, «Não é por gosto, coleccionar por coleccionar, preferia juntar notas de dez contos». Aos 13 anos, Izequiel Guilherme já se aventurava sozinho pelas feiras com a venda de farrapos. Saiu da escola sem saber ler nem escrever, pois num malfadado dia o professor bateu-lhe. Izequiel desforrou-se e partiu-lhe a régua, a vara e mesa durante o recreio, e «nunca mais lá apareci», explica com um sorriso malicioso. Nunca se afastou das feiras, só há pouco mais de meio ano, um transplante de fígado o conseguiu afastar das suas velharias por alguns meses. Estoico, Izequiel Guilherme confessa que agora passa fome e justifica-se. «Estou convencido que o dono do meu fígado devia ser um comilão dos diabos», graceja.
Dos seus cinco filhos, «felizmente», nenhum lhe quis seguir os passos de feirante. E os netos? «Tenho um equipa de futebol, 11, e nunca vêm comigo porque têm escola», refere. O "farrapeiro" olha de suslaio, há clientela junto às suas velharias. «Ó freguesa quer comprar alguma coisinha»?


Retirado do site: Terras da Beira ( Susana Adaixo )